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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

5º de “Dez olhares sobre a Europa” - Gonçalo Tavares

Enquanto os índices bolsistas estavam na estratosfera, queimavam-se vacas na Europa. Hoje, todavia, o culto do valor apaga-se, em benefício do verdadeiro valor das coisas. Visão do escritor português Gonçalo M. Tavares.
Não foi a literatura que se aproximou da política, foi a política que invadiu o campo da linguagem – invadiu e aí ficou. E com a política da Europa, a economia. Já há muito que nestes campos não se trata de deslocar coisas materiais, de decidir sobre o reino vegetal (mandar ou não cortar árvores), animal ou humano – agora quase tudo se decide no campo dos signos – números e letras; e eis um regresso ao mundo infantil: na Europa acreditamos que traços num papel não são apenas traços, mas a diferença entre riqueza e pobreza.
A já velha separação entre o signo e a coisa. A célebre frase “a palavra CÃO não morde”: se pusermos os dedos no C no A ou no O não corremos qualquer risco, os nossos dedos ficarão intactos, o C e o A não mordem – velha lição de linguística. E foi esta separação que inaugurou a modernidade. Os primitivos não acreditavam nisso, não acreditavam em dois mundos separados. Para os primitivos o signo era já uma coisa. O desenho de veado não era o desenho de um veado, era o veado. Não havia diferença.
De certa maneira, a Europa – desde há décadas – que acentuou o seu lado primitivo. Voltou a acreditar na magia. Quase toda a economia está hoje instalada no mundo abstracto, no mundo das letras e dos números – e não no mundo das matérias com volume. Porque a velha economia era isto: duas vacas que se trocavam por mil galinhas; fábricas e máquinas, árvores que se vendiam ou compravam. Pouco a pouco, no entanto, os elementos vivos e os metros quadrados foram desaparecendo de cena. Ficaram papéis com signos e números e a Europa transformou-se assim num Novo Continente Primitivo, em que as pessoas assumem comportamentos idênticos aos das tribos da Amazónia que confundiam signos com o real e acreditavam que a letra A ou um desenho os podia esmagar ou amaldiçoar.
É que se escrevermos num papel a frase “este papel vale cem mil euros”, certamente não iremos acreditar que esse papel, essa folha que antes estava branca, passará a valer 100 mil euros. Mas se ganharmos uma certa distância, veremos que, em parte, toda a queda económica a que assistimos hoje se deve a um processo semelhante, a grande escala.
A economia abstracta instalou-se aí, precisamente, no campo da crença. Quem tem um papel formalizado com um certo símbolo ou selo (mais signos) de uma Instituição Financeira acredita que esse papel vale, se pensarmos nas acções, um certo dia 2 euros, no dia seguinte euro e meio, e na semana seguinte três euros. Estas subidas e descidas do valor das acções, para quem está de fora e não entende nada de nada, são algo ainda mais estranho. Não é apenas a crença fixa num signo, como era a dos Primitivos, agora é uma crença flutuante – que a cada dia muda o valor material que atribui ao signo.
O mais absurdo é que a crença no abstracto, este regresso ao pensamento primitivo que invadiu o mundo contemporâneo, foi acompanhado por uma destruição sem precedentes da matéria concreta. Foram abatidos na Europa vacas e barcos, campos de cultivo foram desactivados, máquinas destruídas ou impedidas de trabalhar, pois não se devia produzir mais do que uma certa quantidade. E ano após ano os dois processos foram avançando em paralelo: destruição das coisas que no mundo tinham volume e multiplicação dos papéis sem volume que simbolizavam riqueza. Acreditou-se, no fundo, que a riqueza estava nos signos e que as vacas, os barcos ou os metros quadrados eram uma riqueza, sim, mas antiga, ultrapassada, inadequada. Uma riqueza sem higiene, dir-se-ia.
E durante anos trocaram-se papéis de um lado para o outro. Pequenas folhas de tamanho A4, A5 ou A6 que rodavam de mão em mão; e, a cada passagem, por magia, essas folhas A4 pareciam aumentar de valor. Como uma passagem de testemunho mágica: o indivíduo A passava um papel ao indivíduo B, este ao indivíduo C, este ao D, e o último da fila, por fim, acreditava que o papel recebido valia já mil vezes o valor inicial.
Em suma, a crise na Europa resulta de inúmeras causas, sem dúvida, mas uma parte da questão é esta: estamos agora diante de uma mudança de crença. A Igreja do Abstracto, a crença no papel que vale dinheiro, parece ter chegado a um beco sem saída, e o número dos seus fiéis diminui – uns abandonam voluntariamente, outros contra vontade, muitos de forma trágica. E talvez com o fim desta crença se esteja a regressar, então, a uma outra. A moderna Igreja do Concreto parece, assim, a cada dia, recuperar a posição forte que já teve – a crença no que é matéria: a crença nas vacas, nos barcos, nos campos e nas máquinas – aí está ela, de volta. (E assistiremos nós, ainda, à destruição dos papéis?)
A Europa avançou muito, tecnologicamente e não só, mas para o europeu não se molhar ainda precisa de um elemento material entre o seu corpo e o céu. Não nos podemos abrigar no desenho de uma casa. E é por isso que a Europa parece avançar e recuar ao mesmo tempo. O que tenta não é fácil: quer deixar para trás o mundo primitivo, e regressar, de novo, à antiga modernidade. Trata-se de voltar a ser materialista, no sentido primeiro do termo. O velho materialismo de que as vacas são o bom exemplo, pesadas e calmas: o seu valor é o seu peso – e assim está bem.
Gonçalo M. Tavares

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