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sábado, 25 de fevereiro de 2012

D. Manuel, clemente na descrição da portugalidade…

O Bispo do Porto, lotou o Auditório Municipal na Conferência de Abertura da 13ª edição das Correntes d’Escritas realizada ontem à tarde.
José Carlos Vasconcelos foi o moderador apresentando a vida e obra, sublinhando a faceta de historiador do convidado.
D. Manuel Clemente iniciou o seu discurso sobre “Portugal e os Portugueses em 2008 e depois” conduzindo os ouvintes por um agradável conjunto de reflexões (segue-se o discurso integral).
“Onde estamos, afinal? Simbolicamente, não num sítio muito diverso do que era o nosso há vinte anos, mas desta vez e para sempre não sós” (Eduardo Lourenço, Vence, 23 de Outubro de 2 000)
D. Manuel Clemente – Bispo do Porto
D, Manuel Clemente e José Carlos Vasconcelos
Agradeço o convite para estar aqui convosco, na 13ª edição do Correntes d’Eescritas, embora sinceramente algo me custe, sobretudo por mim. Com o vosso convite, só posso ganhar e ganhar muito. Significa-me um misto de oportunidade e deslocação, não geográfica, que é curta, mas pessoal, por não ser propriamente um escritor. Escritor, que para o Dicionário da Academia é a “pessoa que escreve obras literárias ou científicas”. Isto não sou nem nunca fui bastantemente, ainda que tenha escrevinhado e poetado alguma vez, ou seguido um percurso académico discente e docente, com os respetivos encargos de investigação e redação. Nada que justifique o título.
Mas tinha de aceitar, dada a simpatia e a insistência do convite, bem como a ocasião de homenagear a iniciativa. Era irrecusável e aqui estou, pedindo-vos desculpa pela breve ocupação do tempo. E o que aqui apresento, com adiantada escusa, não é alguma visão geral do momento português no que à vida literária diz respeito - coisa que não saberia fazer -, mas a rápida descrição de algo que tenho mais à mão e ao pé, ou seja da minha própria vida como “corrente”, palavra esta que, no mesmo Dicionário, significa “água que flui, que não está estagnada”.
Pode ter algum interesse, pelo jogo de circunstâncias internas e externas que me canalizaram sessenta e tal anos de vida – o Dicionário junta esse significado de “água canalizada” –, por entre grandes mudanças de civilização e cultura, da minha terra a Lisboa e de Lisboa ao Porto, da Universidade dos anos sessenta – setenta ao que ela é hoje; como ação e interrogação, e, muito especialmente dentro e bem dentro da mais antiga instituição do nosso território, talvez a mais marcante do seu devir, por adesão ou contraste – o catolicismo português.
Uma “corrente”, de facto, e como era o Douro antes das barragens, entre larguezas e estreitezas, entre calmas e rápidos, entre vidas e mortes, músicas e choros, riquezas e misérias, mas correndo sempre para um mar ao fundo. Pelo conjunto das circunstâncias, a corrente da minha vida foi ganhando o meio do rio e do seu fluxo, encontrando-me com outras mais certas e profundas, que verdadeiramente lhe definem o caudal. Um caudal que vem de muito longe, correndo para Ocidente como a nossa história portuguesa, enquanto havia terra a sulcar, treinando-se para lavrar o mar. Uma corrente que nos transporta a todos e, só por isso, também a mim. Esta posso descrever-vos brevemente: será “uma corrente descrita”.
Começou onde geralmente se começa, na família e em duas mulheres viageiras. Uma viajava por dentro e quase só por dentro; outra também por fora, sempre que podia ser, sendo muito menos do que quereria. A minha avó materna viajou neste mundo mais de cem anos e chamava-se “Aurora”; de Lisboa para o Porto e depois novamente, longamente, no sul. A minha mãe nasceu no Porto e foi cedo para o sul onde eu nasceria, ia ela pelos trintas. Chegou aos noventa e cinco e chamava-se “Sofia”.
A minha avó não gostava de viajar por fora. Enviuvou cedo e demorou depois numa quinta pacata, ao ritmo da noite e do dia, do dia e da noite, das estações do ano e dos ciclos agrícolas. Viajava sim por dentro, por dentro da sua grande casa e das constantes reparações que gostava de fazer, reduzindo os países e continentes aos espaços domésticos que remodelava à vez, assim pudesse. Morando numa casa cheia de recordações geracionais, não gostava de velharias, nem se entretinha com elas, aderindo de bom grado às novidades do tempo, viajando com o século - ou entre séculos, pois nascera em 1890 e falava de D. Carlos e D. Manuel II, Afonso Costa ou Sidónio Pais, como nós falamos de personagens de agora. Mas sem saudades pesadas, porque a viajem continuava.
A minha mãe cultivava mais a memória e lembrava espontaneamente episódios históricos. Sobretudo nossos, pois era medularmente patriota, sem ser minimamente chauvinista, bem pelo contrário. E tinha o maior gosto em viajar para fora, assim também pudesse. E pôde pouco, porque se espraiava em atividades domésticas, religiosas, cívicas e culturais; e porque acompanhou dedicadamente os últimos anos do seu marido e da sua longeva mãe. Mas com que alegria – dela e minha – percorremos o país em curtas viagens de Verão, ficando eu ainda mais intimamente conjugado entre mátria e pátria. E já nos seus oitenta, aí foi ela contente, como a revejo em fotografias que vão da Noruega à Índia… E ai dos mais novos, bem mais novos até, que não lhe acompanhassem a passada.
Esta a minha “corrente” mais próxima, entre chegadas e partidas, princípios concretos e fins almejados. Uma alusão ainda, do que dizia a minha avó à minha mãe: “ – O que queres tu ver, que não tenhas já aqui: casas, estradas, rios e pontes?”. E também: “Viajar, tendo mesmo de ser, só pela alegria que terei ao voltar para casa”. A minha mãe sorria e largava. Por isso uma se chamava Aurora e a outra Sofia.
Posso entrever nisto mesmo a corrente mais larga do nosso Portugal comum. Digamos que as identificações acontecem geralmente assim, pois ganhamos em casa o que seremos depois, caseiramente aliás. De pequena para grande, assim cantava Camões a “casa lusitana”, não podendo ser doutra maneira. Entre ficar e partir, entre partir e regressar, estamos sempre nós, particularmente nós, os portugueses.
Talvez não tenha sido só por moda “renascente” que se ligou Lisboa a Ulisses, quando a Grécia e as coisas gregas ainda gozavam de “boa imprensa”, muito justificadamente gozavam. Pode ter sido por vislumbrar no lendário viajante antigo o bom emblema dum Portugal que entretanto se fizera assim, partindo, aventurando e regressando…
Há muito que me fizeram pensar deste modo. Apontei-o também, ocasionalmente, como em Portugal e os portugueses (Assírio & Alvim, 2008), ou em Isto realmente somos, os portugueses (In Porquê para quê? Pensar com esperança o Portugal de hoje, Assírio & Alvim, 2010). Tudo por insistência externa ou surpresa minha, mas com alguma aceitação dos outros, que só pode significar coincidência de espíritos e análises. E, isto sim, é culturalmente relevante.
No primeiro dos textos, lembrava a nossa matriz judaica, como “povo da promessa”, que assim mesmo se sentiu messiânico para o mundo. Não é algo exclusivamente nosso, mas foi-o muito especialmente, pela realização geográfica que lhe demos e pela desproporção do feito, de tão poucos para tanto: “Digo, por isso, que a relação que mantemos com Portugal é, fundamentalmente, bíblica. Olhamos Portugal como uma personalidade coletiva portadora de uma alma, no sentido romântico do termo, ainda que referido a algo muito anterior ao Romantismo. E a relação que mantemos com esse gostoso e custoso coletivo vem na esteira de um outro povo, que se descobriu eleito e portador de uma missão universal” (Portugal e os portugueses, p. 10).
No segundo texto, lembrei como António Vieira assinalou o destino prévio de Santo António, muito propositadamente para indicar o nosso. António de Lisboa, entre Portugal, Marrocos e a Itália; António Vieira do Tejo ao Amazonas e do Amazonas ao Tibre, nos seus sermões de Roma; os portugueses sempre, querendo ou não querendo, mas obrigatoriamente assim.
A 22 de Maio de 1670, Vieira ainda dizia o seguinte, de Santo António, dele mesmo e de nós todos: “Bem pudera Santo António ser luz do mundo, sendo de outra nação; mas uma vez que nasceu português, não fora verdadeiro português se não fora luz do mundo, porque o ser luz do mundo nos outros homens é só privilégio da Graça; nos Portugueses é também obrigação da natureza” (cit. in Porquê e para quê?, p. 15).
Era preciso algum arrojo para dizer tal coisa num sermão pregado tão fora. Mas isso nunca faltou a Vieira, mesmo para insinuar que os portugueses, para brilharem em todo o lado, nem esperariam pela graça… E hiperboliza, em Santo António e por nós todos: “Saiu como luz do mundo e saiu como português. Sem sair ninguém pode ser grande […]. Assim o fez o grande espírito de António, e assim era obrigado a o fazer, porque nasceu português” (ibidem, p. 16). Ou ainda: “Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal; para morrer, o mundo” (ibidem).
Nisto era expansão natural; mas com o grave revês de não suportarem tanta luz, uns dos outros e ao perto. Mais: natureza tão luminosa em si mesma, além de irresistivelmente expansiva, seria inevitavelmente exilada, para se re-encontrar à larga. Daí que escrevesse no ano seguinte, sempre em Roma: “… assim como Santo António foi obrigado a deixar Portugal, para ser Português, assim foi necessário que se tirasse dentre os Portugueses, para ser tão grande homem, e tão grande santo como foi” (ibidem, p. 17). Até aqui o tom parece heróico; mais abaixo, o remate nem tanto: “… luzir português entre portugueses, e muito menos luzir com a sua luz, é cousa muito dificultosa na nossa terra. Com a luz alheia vi eu lá luzir alguns; mas com a própria, […] nem santo António, quanto mais os outros” (ibidem). E a aceitação geral deste juízo, que quase adivinho em todos, evidencia bem que ainda somos nós, agora aqui, os portugueses.
Ao que vai dito, acrescentarei algo, dantes ou depois de Vieira. Como é o caso do célebre poema em que D. Dinis ironiza com os provençais, que trovavam muito bem, mas só pela Primavera; sinal de que a “coita”, o cuidado amoroso, não era tão grande neles como no próprio. Vale a pena citá-lo: “Proençaes soen mui bem trobar / e dizem eles que é com amor; / mais os que trobam no tempo da frol / e nom em outro, sei eu bem que nom / am tam gram coita no seu coraçom / qual m’eu por mha senhor vejo levar”.
É um trecho muito coincidente com o que os portugueses pensam em geral de si mesmos. Recebem de fora as modas e os motivos – como era então o caso do canto provençal -, mas tudo se mergulha aqui noutra fundura, com os significados agridoces que sempre acrescentamos às saudades.
Recortado pela espada dum rei meio-borgonhês, expandido pela visão dum príncipe meio-inglês, regenerado de oitocentos para novecentos por vagas meio-francesas, quando não francesas de todo, das militares e políticas às literárias e ideológicas, Portugal foi e é ainda uma importação inculturada, nunca tendo terra nem recursos para ser doutro modo.
Isto mesmo poderíamos dizer também de outros e até generalizar. Mas a nossa geografia terminal ou o grande cais em que nos (re)tornámos, trouxeram-nos tanta terra e tanto mar que ganhámos esta atual condição de pátria de todos e ninguém – ou de ninguém para renascer de todos. Creio que Vieira e Pessoa aceitariam a caracterização. Sendo aqui profético o Romeiro de Garrett (Frei Luís de Sousa), como Portugal perdido e no entanto ali, quase pedindo um reconhecimento que o salvasse, passando do “ninguém” que se chamava ao merecido “alguém” que o despertasse, muito merecidamente despertasse. Estamos nisto tão perto dos últimos versos da Mensagem pessoana: “ … (que ânsia distante perto chora? / Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro… / É a Hora!”.
Sim, saberiam trovar os poetas provençais, mas aqui trovava-se sempre; poderiam outros fazer algo em suas terras, mas daqui só se podia adivinhar tudo; poderiam outros manter grandes impérios, mas aqui só do nada se renasceria enfim.
Portugal culturalmente é uma teima, como geograficamente é uma praia, feita cais de partir e chegar, chegar e partir. Não é esta uma realidade unívoca, longe disso, e nem sempre foi positivamente considerada. Não foi só o século XIX que avaliou em baixa o desprezo da terra pelas miragens do mar. Do século XVI chegam-nos os lamentos bem reais de Sá de Miranda, por Lisboa nos despovoar os campos ao cheiro da canela das Índias. Ou as increpações poéticas do Velho do Restelo, contra as trocas do certo pelo incerto e do longe em vez do perto, por poder ou ganância, como não é de mais evocar em contraponto: “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça / Desta vaidade a quem chamamos fama! / Ó fraudulento gosto que se atiça / C’uma aura popular que honra se chama! / Que castigo tamanho e que justiça / Fazes no peito vão que muito te ama! / Que mortes, que perigos, que tormentas, / Que crueldade nele experimentas!” (Os Lusíadas, IV, 95).
Todos com razão certa e sabida. Mas teríamos certamente desaparecido, se não tivéssemos partido.
As coisas são diferentes agora, até onde o podem ser no mesmo povo e língua. Diferentes demais para que uma “forma mentis” de há seis décadas – voltando à corrente pessoal – as possa facilmente perceber. Porque se trata de “cultura”, e não apenas de mais informação, embora marcada pelo acrescento desta. Cultura, como aquilo que sabemos antes de aprender tudo o mais e continuamos a saber depois de esquecermos tudo o resto. Isso mesmo que faz cada um do seu tempo, mesmo que o calendário nos faça conviver enquanto estamos, diversos por dentro mas sincrónicos por fora.
Refiro-me a uma experiência de há poucos dias, que me despertou tal sentimento. Assistia a uma conferência sobre impossibilidades e possibilidades de emprego jovem. Intervenientes vários, todos entre os vinte e os trinta anos, com licenciaturas e mestrados. Um gestor, entre o Porto e Londres, agora cá sem deixar de estar lá, casado com uma psiquiatra e entusiasmado com o que faz e sobretudo inova. Uma jovem bióloga, inteiramente votada à cura da doença de Alzheimer, e por isso passando de escolas portuguesas para inglesas, mas voltando à sua terra com a frequência que as viagens aéreas de baixo custo hoje permitem: tem de estar lá, mas não deixa de vir cá. Um jovem empresário que, por maior expansão, se mudou daqui para Curitiba, onde está com a esposa e já três filhos, deslocando-se no Brasil como nos desafiava a viver na Europa, isto é, continentalmente. Este e o seguinte – um jovem produtor cinematográfico, a trabalhar em Londres com sucesso – intervinham diretamente no debate através do Skype...
Quando me coube a mim concluir algo, foi para constatar que o ficar e o partir se equacionam agora de modo muitíssimo diferente do que ainda há poucos anos nos caracterizava em geral. Mentalmente, ficámos marcados com os êxitos (alguns) e os traumas (muitos) das emigrações forçosas para o Brasil de Oitocentos ou para a França e Alemanha de há meio século e depois. Atualmente, sem com isso descuidar a indispensável viabilidade interna para as novas gerações, somos realmente surpreendidos por novidades grandes que, em termos de comunicação e informação, alteram profundamente as vidas, os trabalhos e as mentes.
E é por tanto ineditismo que o nosso tradicional “a ver vamos” ganha hoje outro palco e outro sonho, atualizando os versos de Sophia: “Navegavam sem o mapa que faziam / […] No silêncio das zonas nebulosas / Trémula a bússola tateava espaços / Depois surgiram as costas luminosas / Silêncios e palmares frescor ardente / E o brilho do visível frente a frente” (Navegações, VI).
Aliás, um dos jovens intervenientes no debate dizia que o trabalho português era geralmente apreciado “lá fora”, em especial pela capacidade de improvisar e resolver problemas inesperados. Dizia até que a anglofonia não tinha tradução exata para o nosso plebeíssimo “desenrascanço”. Mais uma originalidade lexical, para juntarmos ao que se diz sobre a “saudade”. E é possível que entre estas duas originalidades, tão prática uma, tão poética a outra, vá singrando a barca portuguesa, nas partidas e regressos que hoje somos.
É esta a corrente que me leva e tão singelamente vos descrevo. Vou singrando, entre auroras e sofias. Vamos.

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