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domingo, 29 de dezembro de 2013

Viver para a longevidade ou para se ser útil e feliz?

Não é incomum ouvirmos queixas do tipo: “Isso é tão caro!”. Sobretudo, quando vamos ao mercado, às lojas ou quando planeamos alguma viagem. Já disse por aqui, muitas vezes, que quase tudo esbarra em dinheiro, principalmente para aqueles que mais carecem dele; trabalhadores assalariados e os menos favorecidos socialmente.
Jackislandy Meira de Medeiros Silva
A bem da verdade, volta e meia somos flagrados, até involuntariamente, em certos sobressaltos de admiração pelo alto custo das coisas. Porém, para muitos que andam tão indignados com a (inflação) crise, é bom que façam a seguinte reflexão: E se tivesse que deixar 300 euros ou mais do seu orçamento mensal numa farmácia para se manter vivo? Certamente, a situação seria outra e as queixas não se repetiriam tanto. Pensando bem, antes de se indignar por isso, parece ser mais razoável agradecer. O ato de agradecer também nos deixa mais resistentes, muito embora não concorde com toda esta exploração financeira do mercado.
O que pretendemos com essa simples demonstração de humanidade? De imediato, tirarmos o nosso foco existencial da economia, do capitalismo e da baboseira de que sem dinheiro não somos nada. Não somos nada sem saúde. Este é o ponto do nosso interesse. Com o país em situação económica instável, pelo menos até agora, a indústria farmacêutica tende a acelerar cada vez mais, enriquecendo, em função da prática de uma medicina paliativa e não preventiva, tampouco educativa e filosófica. Contudo, tal prática está a mudar com a orientação médica de caminhadas, exercícios físicos, regimes, dietas, práticas de higiene e o cuidado com o corpo.
A medicina antiga, dos tempos de Hipócrates, era extremamente preventiva, ética e, por isso, filosófica. Estamos a falar da segunda metade do séc. V a.C. e das primeiras décadas do séc. IV a.C., o mundo era outro, a cultura também, os valores eram diferentes, mas o corpo era o mesmo. Afinal, a medicina sempre operou sobre ele. Hipócrates era contemporâneo de Sócrates, Platão e Aristóteles que o consideraram como o grande médico.
Da mesma linha ascendente a que se remetiam os médicos no passado, Hipócrates herdou um ofício divinizado de Esculápio, o primeiro a ser chamado de “médico” ou “salvador” por ter aprendido do centauro Quíron a arte de curar os males. Com Hipócrates, a medicina alcança o status de ciência e passa a compreender as doenças como causas naturais do homem. Assim como Sócrates na Filosofia, Hipócrates com a medicina desenvolve toda uma observação racional acerca do ser humano, o seu corpo e alma. O “conhece-te a si mesmo” e o “meden agan”, isto é, o nada em excesso, vão nortear os princípios sábios da medicina hipocrática.
Curiosamente, os regimes, dietas, reeducação alimentar, passeios, atividades físicas, higiene e tudo a que nos submetemos hoje para preservarmos uma boa saúde era observado com precisão e justa “medida” por Hipócrates no IV livro das Epidemias: “os exercícios (ponoi), os alimentos (sitia), as bebidas (pota), os sonos (hupnoi), as relações sexuais (aphrodisia) – todas sendo coisas que devem ser 'medidas'. A reflexão dietética desenvolveu essa enumeração. Dentre os exercícios distingue-se  aqueles que são naturais (andar, passear), e aqueles que são violentos (a corrida, a luta); fixa-se quais são os que convém praticar, e com que intensidade, em função da hora do dia, do momento do ano, da idade do sujeito e da sua alimentação. Aos exercícios estão relacionados os banhos, mais ou menos quentes, e que também dependem da estação, da idade, das atividades e das refeições que foram feitas ou que ainda se vão fazer. O regime alimentar – comida e bebida – deve levar em conta a natureza e a quantidade do que se absorve, o estado geral do corpo, o clima, as atividades que se exercem...” (In FOUCAULT, M. História da Sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998, p. 93).
Interessante notar como a medicina, na aurora da Filosofia, exercia um papel de formidável educação das pessoas, na medida em que levava a pensar a conduta humana; a maneira pela qual se conduzia a própria existência, despertando um comportamento em função de uma natureza, de modo a que o homem compreendesse a sua “physiologia”, a fim de saber preservá-la e conformar-se a ela. A dietética hipocrática constituía, para os antigos, uma arte de viver.
As práticas de cuidado com o corpo de Hipócrates estavam tão presentes no modo de vida, no quotidiano das pessoas da antiguidade que influenciaram fortemente a Filosofia no seu nascimento, tanto que Platão faz ressalvas, nos seus diálogos, aos excessivos exercícios e dietas que visam apenas a longevidade, e não a uma vida útil e feliz. Relatos de Xenofonte, nas Memoráveis, traz Sócrates a orientar os seus discípulos para serem “capazes de se bastarem a si próprios” (IV, 7); “Que cada um se observe a si próprio e anote que comida, que bebida, que exercício lhe convêm e de que maneira usá-los a fim de conservar a mais perfeita saúde” (idem). Portanto, o mestre Sócrates ensina a ter autonomia para com a sua saúde: “Se vos observardes deste modo, dificilmente encontrareis um médico que possa discernir melhor do que vós próprios o que é favorável à vossa saúde” (idem).

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