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quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Portugal - Antes de 2013 e depois de 2014…

Em 10 anos, a Beira Interior perdeu 31.000 habitantes, o equivalente a uma cidade média. Estes são os rostos de quem ficou.
Fotos de António Pedro Santos
Rosa Ramos
Rosa morreu na véspera da inauguração da auto-estrada e nunca mais ninguém se lembrou dela - tristes os que morrem na véspera da chegada do progresso.
Os filhos em França, a panela de ferro ao lume, o avental preto meio sujo, os cabelos brancos a espreitar debaixo do lenço, a telefonia ligada. Rosa morreu num dia assim.
À hora do enterro no cemitério da aldeia, a comitiva de secretários de Estado chegava à cidade. Ajeitaram-se as gravatas enrugadas da viagem, discursou-se sobre as assimetrias entre o Interior e o Litoral - Rosa morreu sem nunca ter visto o mar -, houve bandas e fanfarras, vénias e continências, comes e bebes e garantias de que agora, com a estrada a direito é que o desenvolvimento ia chegar.
Quando a festa acabou, já Rosa estava a dormir debaixo da terra e os outros velhos da aldeia em casa, conformados, a contar pelos dedos os que ainda sobram. Num tempo que já não volta, chegaram a ser mais de 400. Agora não chegam a 40 e as ruas são cadáveres de pedra.
A auto-estrada, essa ruga gigante que quase cortou a aldeia ao meio e prometia resolver todos os problemas, só serviu para levar gente embora. Não trouxe ninguém e, no dia em que passou a ser paga, os que foram deixaram de voltar.
Já não há crianças e a escola fechou.
O forno são ruínas e os castanheiros morreram de pé.
Já não há recolha de leite e o merceeiro não passa.
Não há quem semeie, quem ceife, quem colha ou quem compre o que se colheu.
Não há panelas de ferro nem viúvas de preto.
Os filhos envelhecem na França, dizem que não voltam e os que voltaram são tão tristes como as casas de granito vazias.
Os filhos dos filhos foram-se embora.
A Junta deixou de ser Junta e agora é outra coisa qualquer, noutro lugar.
O posto público da PT fechou porque o dono morreu.
Sobram os velhos, pedaços de rugas à lareira, à espera que a morte os leve como levou a Rosa. Que ao menos na lápide haja um poema de Torga. "Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo… A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa…"
Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras, e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil. Lá está o exemplo de Miguel Angelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerez. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespeare... Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!
Miguel Torga, in "Diário (1942)"

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