(per)Seguidores

terça-feira, 8 de julho de 2014

E que se saiba, a meritocracia não tem sexo, às vezes tem cotas

Filha de uma administrativa e de um mecânico de automóveis, ambos com a 4.ª classe, ex-basquetebolista de competição fascinada por comboios, Maria João Guerra passou pela Sorefame/Bombardier. Hoje, aos 39 anos, gere 600 funcionários e um orçamento de dezenas de milhões de euros numa empresa multinacional na Alemanha. O perfil de uma emigrante que diz não pensar trabalhar mais em Portugal mas que desconstrói estereótipos sobre o país de Merkel.
Fernanda Câncio
É alta, bem alta - como é suposto ser, como jogadora de basquetebol federada que foi quando jovem (ou mais jovem, vá) - e move-se com a informalidade impositiva que associamos às pessoas habituadas a ocupar o seu espaço sem pedir desculpa, o sorriso fácil em permanente reserva de ironia. É, dir-se-ia, alguém capaz de encontrar motivo de diversão mesmo no que a aborrece - mas não deve ser fácil, em todo o caso, quando a aborrecem; sente-se que se habituou a comandar e a ser obedecida e, por vezes, a fazer show disso. Com plena consciência: "Sou muito teatral."
Foi a Bombardier que, em 2006 (depois de passar 3 anos no Porto por causa do novo metro da cidade), a desafiou pela primeira vez a trabalhar fora do país. Esteve em Bruxelas, Madrid e Berlim. A primeira experiência alemã, a que se segue, desde 2012, a de dirigir a Supply Chain (centro de abastecimento/logística) europeia da TE Connectivity, empresa americana de componentes eletrónicas que "faz mundialmente 13.000 milhões de dólares/ano (perto de 10.000 milhões de euros) e emprega 90.000 pessoas de mais de 50 países." Concorreu e foi escolhida, depois de um regresso a Portugal no final de 2009, por motivos pessoais, vindo assumir a direção de uma fábrica de turbinas eólicas.
Na Alemanha, garante, não sentiu qualquer tipo de reação por ser uma mulher a chefiar uma empresa com uma força de trabalho sobretudo masculina - "Ninguém parece sequer gastar um minuto a pensar nisso, e assim devia ser sempre." - e acaba até de ser promovida: entregaram-lhe em maio a direção de mais uma fábrica com 400 funcionários, a principal fábrica do setor energético da empresa. Mas confrontou-se com outros preconceitos.
"Basicamente os alemães estão intoxicados pela verdade oficial que também ouvimos em Portugal. Que gastámos de mais e agora temos de sofrer. Dizem: "Andamos a pagar para vocês". E eu respondo: "Nós é que andamos a pagar para salvar os vossos bancos, vocês é que ainda não perceberam isso.""
O viés manifesta-se também na retração do investimento estatal: "Há esta ideia de que o dinheiro dos impostos não se pode gastar. O que implica, no caso da Alemanha, com a decisão de fechar as centrais nucleares e a ausência de investimento do Estado em energias limpas - seria necessário investimento estatal na infraestrutura -, ir-se provavelmente acabar a comprar energia a França, que a produz em centrais nucleares."
Ironias em catadupa, mas nenhuma tão aparatosa como a de confirmar a impressão com que ficara na sua primeira incursão no país: "A Alemanha é, do ponto de vista das leis, muito mais protecionista da força de trabalho, porque a empresa é entendida como uma entidade social, até comunitária, que pertence não só aos donos como aos trabalhadores. Há o entendimento social de que os trabalhadores são tão importantes como os patrões. O poder de comissões de trabalhadores e de sindicatos, de facto e no espírito da lei, é muito maior do que em Portugal. Os direitos legais protegem muito mais. Se eu quiser pôr um trabalhador a trabalhar num feriado ou ao domingo, tenho de justificar. Um funcionário público é que decide, com base na lei alemã, se as empresas podem ou não trabalhar ao domingo."
Além disso, garante, "as pessoas têm muito mais garantias sociais e muito mais apoio. O subsídio de desemprego é mais curto, mas a seguir chama-se outra coisa, passa a outros subsídios. O Estado paga a renda de casa, mais um rendimento por cada membro do agregado familiar... A Alemanha tem muito mais proteção laboral e social do que Portugal." Sorri. "E na Baviera, onde estou (vivo em Munique), temos 30 dias de férias, fora os feriados: é a zona com mais feriados na Europa."
A cereja no topo do bolo é, porém, a história de uns portugueses de Viseu que levou para trabalhar no Norte da Alemanha. "Ficaram chocados. Vieram contar-me que os alemães, no turno da noite, iam dormir para a casa de banho, e que eles, portugueses, é que trabalhavam. Que o que se vendia sobre os alemães era mentira." Maria João assente. "Na Alemanha pode estar tudo definido, mas sucede ninguém fazer o que é suposto. Em Portugal o problema é bem diferente: as organizações não dizem às pessoas o que esperam delas."
Entre outros: para Maria João Guerra, que vem a Portugal de 3 em 3 semanas para estar com a família e os amigos, é um país "em que não existe meritocracia, e com elites que são capazes de ser as piores do mundo civilizado". E para ela, nascida em novembro de 1974, numa família lisboeta de Alcântara, mãe administrativa e pai mecânico de automóveis, ambos com a 4.ª classe - "A minha vida não seria possível se não tivesse havido o 25 de Abril" -, que tem o objetivo de "chegar à vice-presidência (mais acima acho que não, preciso de ter contacto com as pessoas)", nada menos do que uma meritocracia serve.
Como é fácil perceber, é tão discriminatório sobrelevar as capacidades masculinas como das femininas para tarefas que ambos são capazes de exercer. E por isso, propositadamente omito um naco de prosa que retrata o percurso de vida da visada e ideias sexistas (ou de género, se preferirem), que nada acrescenta ao âmago da questão: o panorama laboral e social na Alemanha em contraponto com o que temos e querem reduzir…
Destaque-se que a vida de sucesso pessoal desta portuguesa não seria possível se não tivesse havido o 25 de Abril… que ainda não chegou aqui.

Sem comentários:

Enviar um comentário